ELA E ELE
“Vou contar o que ela vê nele: Ela vê uma serenidade
rara e isso é mais importante do que o Porsche que ele não tem, ela vê
que ele se emociona com pequenos gestos e se revolta com injustiças, ela
vê uma pinta no ombro esquerdo que estranhamente ninguém repara, ela vê
que ele faz tudo para que ela fique contente, ela vê que os olhos dele
franzem na hora de ler um livro e mesmo assim o teimoso não procura um
oftalmologista, ela vê que ele erra, mas quando acerta, acerta em cheio,
que ele parece um lorde numa mesa de restaurante mas é desajeitado pra
se vestir, ela vê que ele não dá a mínima para comportamentos padrões,
ela vê que ele é um sonhador incorrigível, ela o vê chorando, ela o vê
nu, ela o vê no que ele tem de invisível para todos os outros. Agora vou
contar o que ele vê nela: Ele vê, sim, que o corpo dela não é nem de
longe parecido com o da Daniella Cicarelli, mas vê que ela tem uma coxa
roliça e uma boca que sorri mais para um lado do que para o outro, e vê
que ela, do jeito que é, preenche todas as suas carências do passado, e
vê que ela precisa dele e isso o faz sentir importante, e vê que ela até
hoje não aprendeu a fazer um rabo-de-cavalo decente, mas faz um cafuné
que deveria ser patenteado, e vê que ela boceja só de pensar na palavra
bocejo e que faz parecer que é sempre primavera, de tanto que gosta de
flores em casa, e ele vê que ela é tão insegura quanto ele e é humana
como todos, vê que ela é livre e poderia estar com qualquer outra
pessoa, mas é ao seu lado que está, e vê que ela se preocupa quando ele
chega tarde e não se preocupa se ele não diz que a ama de 10 em 10
minutos, e por isso ele a ama mesmo que ninguém entenda.”
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